O novo álbum de Alaíde Costa é um comentário a respeito do Tempo. Aquele deus que tudo cura. O que não espera, o que é implacável, o que traz as rugas e forma os calos. O mesmo deus que construiu, junto com a cantora e compositora carioca, década por década e canção por canção, uma carreira ativa de setenta anos – e contando. Mas que também decidiu que todas as glórias dessa árdua caminhada seriam dadas tardiamente à artista. Em dezembro, Alaíde Costa completa 89 anos de vida. E só agora, nos dois últimos anos, ela vive, como diz, “o auge da carreira”, “o melhor momento”, “o reconhecimento”.
É para dar continuidade a esse movimento que chega agora, em 19 de julho, E o Tempo Agora Quer Voar, segundo volume de uma trilogia iniciada em 2022 com o premiado O que meus Calos Dizem Sobre Mim. Tanto quanto no álbum anterior, o novo trabalho traz músicas criadas especialmente para a voz tão pessoal da cantora – desta vez, escritas por nomes como Caetano Veloso, Marisa Monte, Nando Reis, Rubel, Carlinhos Brown, Rashid e Ronaldo Bastos, entre outros. Produzido mais uma vez pelo trio Marcus Preto, Pupillo e Emicida, E o Tempo Agora Quer Voar conta também com a participação especial da cantora Claudette Soares, amiga de Alaíde Costa há mais de 60 anos, em uma das faixas.
O título do álbum tem duplo sentido. No primeiro, o tempo que quer voar é aquele que só agora, quando a cantora completa sete décadas de carreira, decidiu começar a correr depressa, concentrando as conquistas de toda uma vida em menos de dois anos: as validações, os prêmios, o calor de um público crescente, possibilidades internacionais etc. O segundo sentido trata de um choque de tempos: de um lado, a vertiginosa pressa dos nossos dias, em que a música tem que durar um minuto para viralizar nas redes sociais e afins; do outro, o andamento interno de Alaíde Costa, sempre suave e delicado. Em estúdio, os produtores logo perceberam que esse era um ponto sólido e inabalável, como se a artista determinasse: “O tempo agora quer voar, mas eu sou dona do meu próprio tempo”.
REPERTÓRIO
Além de respeitar o ritmo particular de Alaíde Costa, E o Tempo Agora Quer Voar também faz uso da biografia da artista para desenvolver a poética das canções. Reflexos de sua vivência tão rica surgem nas letras – em alguns casos, deliberadamente, já que Emicida ouviu da própria Alaíde algumas das histórias que transformaria depois em versos.
Um desses temas autobiográficos abre o álbum. Alaíde conta que, quando preparava seu LP Coração (1976), ela e Milton Nascimento, produtor daquele trabalho, foram à casa de Caetano Veloso atrás de uma canção inédita. Acontece que não atentaram a um dos hábitos mais conhecidos do compositor e chegaram em seu endereço logo cedo, pela manhã. Desde sempre, Caetano nunca sai da cama antes do meio da tarde. Acabaram desistindo de esperar e foram embora sem a música. Tempos depois, num encontro casual, Caetano comentou: “Alaíde, pena que eu não entrei no seu Coração”. A resposta veio rápida: “Não entrou porque não quis”. A partir dessa história, Emicida criou, junto com Alaíde, os versos que depois ganharam melodia de… Caetano Veloso. Vale notar que “Foi Só Porque Você Não Quis” usa justamente o universo poético do LP Coração para o desenvolvimento dos versos, cujo refrão diz: “Se você não entrou no meu coração/ Foi só porque você não quis”.
Letra composta por Emicida e Luz Ribeiro sobre melodia de Rubel, “Bilhetinho” também nasceu por essa via memorial. São lembranças de uma Alaíde Costa ainda adolescente, que descobria àquela altura a dinâmica do flerte, o frio na barriga, as promessas enviadas em um pedacinho de papel. Mas, se são as memórias de uma octogenária, passado e presente se misturam: “Me diz o que essas linhas são/ Se não a fuga de um viver/ Que já se confundiu com fenecer”.
A terceira canção assinada por Emicida neste álbum, “Meus Sapatos” tem menos da biografia de Alaíde Costa – embora, em alguma medida, encoste nos pés de O que Meus Calos Dizem Sobre Mim. A letra foi começada por Rashid – mais um rapper trazido para dentro do universo de Alaíde Costa – sobre melodia de Gilson Peranzzetta, colaborador da cantora desde os anos 1970, e tem como cenário a cidade que Alaíde escolheu para viver e criar os filhos a partir da década de 1960: “A solidão lá de São Paulo/ Imensidão na qual me calo/ E sonho alto sem ter sapatos de cristal”.
Foi nessa mesma São Paulo que Alaíde Costa se conectou, também nos anos 1960, com Claudette Soares, aquela que viria a ser sua melhor amiga de toda a vida. E ter Claudette cantando neste álbum foi um pedido de Alaíde desde que começamos a produzir E o Tempo Agora Quer Voar. As vozes dessas duas representantes da Bossa Nova se unem em “Suave Embarcação”, segunda parceria de Alaíde Costa com Nando Reis (antes, a dupla escreveu “Tristonho”, gravada no álbum anterior). Nando, aliás, já declarou que faz questão de ter mais uma parceria com Alaíde no terceiro volume da trilogia.
“Bem Belém” é uma composição a seis mãos, com música do jovem pernambucano Zé Manoel e letra de Leonel Pereda e Ronaldo Bastos, autor de tantos sucessos do nosso cancioneiro e um dos nomes mais atuantes no clássico Clube da Esquina (1972), álbum de que Alaíde Costa participou, sendo a única mulher na ficha técnica. A gravação de “Bem Belém” tem a participação do mestre Jota Moraes ao vibrafone.
A poeta Clara Delgado colocou letra em melodia escrita a quatro mãos por Zé Renato (do Boca Livre) e Cristóvão Bastos. Nasceu “Além de uma Palavra”, cuja temática conversa com a de “Moço”, parceria de Marisa Monte e Carlinhos Brown que Alaíde lançou como single em maio do ano passado. As duas canções estão colocadas lado a lado em E o Tempo Agora Quer Voar por esse motivo. Se a personagem de Clara Delgado lamenta um sumiço repentino e mal explicado (“Você se esqueceu das coisas/ Roupas no chão, luzes acesas/ Taças na mesa e quase nada/ De me dizer palavra”), a de Marisa Monte inverte a lógica machista de outros tempos, quando apenas o homem saía para noites inexplicáveis enquanto a mulher o esperava em casa (“Não se preocupe, eu vou demorar/ É que uma amizade veio me buscar/ Você não estava/ E eu fui brincar/ Até mais tarde”).
Por fim, as oito faixas de E o Tempo Agora Quer Voar se completam com “Ata-me”, de Junio Barreto e Montorfano. Alaíde Costa se apaixonou por letra e melodia assim que ouviu pela primeira vez, “so precisa ser mais lenta um pouco pra ficar do meu jeito”. Esta faixa é a mais antiga do novo álbum e estava programada para entrar em O que meus Calos Dizem Sobre Mim. Mas acabou esperando para ser lançada, também como single, em setembro.
Com o intuito em manter a unidade estética nos três álbuns da trilogia (o último volume está planejado para 2026), Marcus Preto, Pupillo e Emicida optaram por recrutar o mesmo time de músicos e técnicos: Fábio Sá no contrabaixo acústico, Léo Mendes no violão de sete cordas e o próprio Pupillo na bateria. Jota Moraes participa em uma faixa. Os arranjos de sopros ficaram, de novo, a cargo do pernambucano Henrique Albino e do carioca Antonio Neves. Mixagem e masterização ficaram nas mãos de Carlos Trilha.
A foto da capa surgiu na primeira ida de Alaíde Costa a Portugal, no ano passado. Aproveitando a viagem para uma pequena leva de shows, a cantora foi ao encontro do fotógrafo carioca (que vive em Lisboa) Daryan Dornelles, um especialista em retratar figuras da música. O design ficou aos cuidados de Emicida, com assistência de Júlio Benedito. A caligrafia da própria Alaíde foi usada para, literalmente, batizar e assinar a capa do álbum.
Em muitas ocasiões nesses dois últimos anos, públicas ou particulares, Alaíde Costa lamentou o fato de seu amigo Johnny Alf (1929 – 2010) não ter tido tempo de, como está acontecendo com ela agora, ver o tempo enfim voar a seu favor. O cantor e compositor, um dos precursores da Bossa Nova, ainda não foi reconhecido à medida de seu talento e de seu legado para a música brasileira. Por essa razão, E o Tempo Agora Quer Voar é dedicado à memória dele: Johnny Alf.
FICHA TÉCNICA
E o Tempo Agora Quer Voar
Produzido por Marcus Preto, Pupillo e Emicida
Bateria e percussões: Pupillo
Contrabaixo acústico: Fábio Sá
Violão de sete cordas: Léo Mendes
Arranjos de sopros: Henrique Albino e Antonio Neves
Arranjo de cordas (“Moço”): Antonio Neves
Gravado por Thiago “Big” Rabello no estúdio Dá Pá Virada (SP) entre 2022 e 2024
Assistente de gravação: Victor Nery
Mixagem e masterização: Carlos Trilha
Capa:
Foto: Daryan Dornelles
Caligrafia: Alaíde Costa
Design: Emicida
Assistente de design: Júlio Benedito
Um lançamento Samba Rock Discos
Distribuição: Altafonte