Coluna Tiago da Silva Candido

Como a Inteligência Artificial está redesenhando o mercado de trabalho no Brasil

Automação deixou de ser papo de fábrica e chegou ao escritório. E o Brasil corre para não ficar para trás.

A inteligência artificial (IA) saiu das apresentações futuristas e entrou na planilha, no e-mail, no atendimento ao cliente e até no código de software. Nos últimos anos, empresas brasileiras de todos os tamanhos começaram a testar — e, em muitos casos, adotar de vez — ferramentas que prometem fazer em minutos o que antes levava horas de trabalho humano.

Por trás do discurso de “ganho de produtividade”, porém, existe uma disputa silenciosa: quem ganha, quem perde e quem fica de fora dessa nova onda tecnológica?

“Não é mais uma discussão sobre se a IA vai chegar ao mercado de trabalho. Ela já chegou. A pergunta agora é quem está preparado para trabalhar com ela”, resume um consultor de transformação digital que assessora grandes empresas no Brasil.


Da linha de produção para o escritório

Quando se falava em automação, por décadas a imagem era sempre a mesma: robôs industriais substituindo operários em fábricas. A IA mudou esse roteiro.

Hoje, as tecnologias que mais avançam no ambiente corporativo brasileiro não são braços robóticos, mas sim modelos de linguagem, sistemas de recomendação e algoritmos de análise de dados. Eles atuam em funções que, até pouco tempo atrás, eram consideradas tipicamente “intelectuais”:

  • Atendimento ao cliente: chatbots de nova geração fazem triagem de dúvidas, abrem chamados e resolvem problemas simples sem interferência humana.
  • Marketing e comunicação: geração automática de textos, slogans, e-mails e até roteiros de vídeo.
  • Rotina administrativa: leitura de documentos, extração de dados de PDFs, classificação de contratos e notas fiscais.
  • Área jurídica e financeira: apoio na revisão de contratos, checagem de conformidade e análises preliminares de risco.

Na prática, o que está sendo automatizado não são, de imediato, cargos inteiros, mas tarefas específicas dentro de quase todas as profissões.


Quem já sente o impacto primeiro

A onda de IA não atinge todos da mesma forma.

Profissões com grande volume de tarefas repetitivas, baseadas em regras claras e em documentos estruturados tendem a estar na linha de frente da transformação. Entre os mais afetados:

  • atendentes de suporte e call center
  • assistentes administrativos IPTV
  • produtores de conteúdo em grande escala (como redação de descrições e textos padronizados)
  • analistas júnior de diversas áreas, que executam tarefas de base

“O que a gente está vendo é uma compressão da base da pirâmide. Funções de entrada, que antes eram porta de acesso ao mercado, estão sendo reduzidas ou redefinidas”, explica um pesquisador em futuro do trabalho.

Ao mesmo tempo, surgem novas funções ligadas justamente à operação dessas tecnologias:

  • especialistas em integração de IA a processos internos
  • profissionais de dados (engenharia, análise, governança)
  • responsáveis por ética, privacidade e uso responsável de IA
  • designers de experiência que ajustam a interação entre humanos e algoritmos

O risco da nova desigualdade: quem sabe usar, manda; quem não sabe, obedece

Um dos pontos que mais preocupam especialistas é a possibilidade de a IA criar uma nova fronteira de desigualdade no mercado de trabalho brasileiro: não apenas entre quem tem ou não emprego, mas entre quem sabe usar essas ferramentas e quem fica dependente de decisões que não entende.

Trabalhadores com maior escolaridade e acesso a formação contínua tendem a se beneficiar mais, usando IA para ampliar sua produtividade e negociar melhores posições. Já quem não tem acesso à capacitação corre o risco de ficar preso a funções de menor valor agregado — ou simplesmente ser substituído.

“A IA pode tanto ampliar oportunidades quanto aprofundar desigualdades. Vai depender menos da tecnologia em si e mais de como empresas e governos lidam com educação e requalificação”, aponta uma economista especializada em inovação.


Requalificação: de diferencial a questão de sobrevivência

Se em revoluções tecnológicas anteriores a requalificação era vista como um diferencial competitivo, na era da IA ela se torna, na prática, uma questão de sobrevivência.

Empresas que adotam IA em escala relatam um mesmo padrão: a tecnologia até funciona, mas trava quando as equipes não sabem usá-la de forma estratégica.

Por isso, cresce a oferta — e a procura — por:

  • cursos rápidos de IA aplicada ao negócio
  • formações básicas em dados e automação de processos
  • treinamentos internos sobre uso responsável de ferramentas de IA generativa

Para o trabalhador individual, a mensagem implícita é direta:
quem não incorporar IA ao seu repertório corre o risco de competir contra ela, em vez de competir com a ajuda dela.


E o Brasil? Entre o potencial e o atraso estrutural

O Brasil ocupa uma posição ambígua nesse cenário.

De um lado, o país conta com um ecossistema vibrante de startups de IA aplicada em setores como agronegócio, varejo, serviços financeiros e saúde. Grandes bancos, varejistas e empresas de telecomunicações já usam IA em larga escala para prever demanda, reduzir fraudes e personalizar ofertas.

De outro, desafios históricos pesam:

  • desigualdade de acesso à educação e tecnologia
  • baixa qualificação digital em boa parte da força de trabalho
  • dificuldade de pequenas e médias empresas em investir em inovação

No campo regulatório, o debate sobre um marco legal para IA avança, com foco em temas como transparência de algoritmos, responsabilidade por danos e uso em serviços públicos. A forma como essa regulação será implementada deve influenciar diretamente o ritmo de adoção da tecnologia, especialmente em setores mais sensíveis, como saúde, segurança e crédito.


O que muda, na prática, para o trabalhador

Diante desse cenário, algumas mudanças de fundo se desenham para os próximos anos:

  1. A maioria das profissões terá algum componente de IA
    Mesmo quem não trabalha em tecnologia deve lidar com ferramentas de automação, análise de dados ou assistentes digitais em algum nível.
  2. Tarefas “mecânicas de escritório” tendem a encolher
    Copiar dados, formatar documentos, escrever textos repetitivos e fazer análises básicas será, cada vez mais, tarefa de software.
  3. Cresce o valor de habilidades humanas difíceis de automatizar
    Pensamento crítico, capacidade de síntese, comunicação, negociação, criatividade e entendimento de contexto se tornam ainda mais centrais.
  4. Aprender continuamente deixa de ser um conselho motivacional
    Quem não se atualizar corre o risco real de ver sua função encolher ou se tornar obsoleta em poucos anos.

“O futuro do trabalho não será humano ou artificial. Será híbrido. A disputa é por quem vai conseguir se posicionar nesse novo arranjo”, resume o consultor ouvido pela reportagem.


Não é sobre “robôs versus humanos” — é sobre quem define as regras do jogo

Reduzir a discussão da IA ao medo de “perder o emprego para um robô” simplifica demais um fenômeno muito mais complexo. A tecnologia, por si só, não determina o futuro do trabalho; ela abre possibilidades. Quem decide como essas possibilidades serão usadas — e distribuídas — são empresas, governos e a própria sociedade.

Para o Brasil, o desafio está em transformar a adoção de IA em oportunidade coletiva, e não apenas em ganho de eficiência concentrado em poucos setores. Isso passa, inevitavelmente, por políticas de educação, incentivo à inovação e proteção social para quem será inevitavelmente impactado na transição.

No fim, a pergunta que fica para trabalhadores e empresas é menos “a IA vai me substituir?” e mais:
“como eu posso me reposicionar em um mundo em que a IA é parte da infraestrutura básica do trabalho?”

Tiago da Silva Candido

Colunista de portais como Correio Braziliense, Tonafama, F5 online e Imprensa e Midia e mais 1500 sites.
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