Psicólogo Renan Santana explicaSaúde

Microtraições: limites emocionais no mundo digital

Por Renan Santana — Psicólogo de casais e neurocientista

1) Como diferenciar insegurança do parceiro de uma microtraição quando há curtidas e conversas escondidas?

Curtidas, isoladamente, não representam infidelidade. O que importa é o contexto, a intenção e o padrão. Quando uma pessoa curte fotos estratégicas, repete o comportamento em perfis específicos ou reage de modo sugestivo, isso pode comunicar algo além do simples ato de interação.

Mas também não é saudável transformar o relacionamento em vigilância. O amor mais maduro acontece em liberdade — é quando conseguimos observar os movimentos do outro, ver suas ações naturais e ainda assim manter a confiança.

Liberdade, no entanto, não é ausência de limites. O casal precisa construir acordos claros: o que é aceitável curtir, comentar, compartilhar. Há casais, por exemplo, que acham natural demonstrar atração juntos (“olha essa pessoa bonita!”), e isso fortalece a transparência.

Já conversas escondidas indicam um outro tipo de comportamento — mais arriscado. Quando algo é ocultado, há uma quebra potencial de confiança, mesmo que o conteúdo não seja grave. O primeiro passo é compreender o motivo do segredo: às vezes, o parceiro esconde porque sabe que o outro não reagiria bem, o que aponta para um problema de comunicação e medo de punição.

A melhor saída é reagir com maturidade e naturalidade, criando um ambiente onde a verdade não precise ser temida. É assim que se conhece quem o outro realmente é — sem máscaras, sem o medo de ser punido por cada impulso humano.

2) O que mais fere nesses comportamentos: o ato, a intenção ou o segredo?

O que mais fere é o que acompanha o ato: a insegurança, o medo de ser substituído, o sentimento de estar competindo por atenção. A curtida ou a conversa em si são apenas sintomas; a dor está no significado atribuído a elas.

No fundo, existe o receio de que, se o outro se interessa por alguém, isso significa que o amor acabou. Mas amar alguém não desliga o desejo por outras pessoas. O cérebro humano não possui um botão de exclusividade. O que define a fidelidade não é a ausência de desejo, mas o que fazemos com ele.

Controlar excessivamente o outro é o caminho mais rápido para perder o vínculo. Quanto mais medo se tem de perder, mais se tenta controlar — e quanto mais controle, mais afastamento. A maturidade afetiva está em compreender que o amor é uma escolha livre, feita todos os dias, e que o respeito mútuo não precisa ser vigiado.

3) Interações online costumam evoluir para algo maior? O que marca essa transição?

Sim, e isso costuma acontecer em períodos de vulnerabilidade emocional do casal. Já acompanhei casos em que, durante momentos de afastamento, sobrecarga de trabalho ou falta de atenção mútua, uma das partes começou a buscar no digital aquilo que sentia falta: validação, elogio, presença emocional.

Esses contatos funcionam como uma “zona de escape”, onde a pessoa se sente vista e valorizada. A princípio, é apenas uma troca leve, mas o envolvimento emocional cresce e, em alguns casos, evolui para encontros presenciais. Quase sempre, porém, o encontro físico é decepcionante — o prazer estava na fantasia e na idealização digital, não na realidade concreta.

O digital é um amplificador de carência: ele oferece a ilusão de um vínculo intenso, rápido e sem consequências. E quando o relacionamento principal está fragilizado, o espaço para essa substituição simbólica aumenta.

4) Por que tantas pessoas se sentem “viciadas” em atenção digital, mesmo em relacionamentos estáveis?

A explicação está na neurociência da dopamina. Cada curtida, mensagem ou visualização aciona o sistema de recompensa do cérebro, o mesmo circuito envolvido em vícios comportamentais. Esse reforço é intermitente — ou seja, imprevisível —, o que o torna ainda mais poderoso e viciante.

O problema não é buscar aprovação. O problema é um ecossistema digital criado para capturar nossa atenção, prolongar o tempo de uso e nos manter emocionalmente dependentes da validação externa.

Não é uma falha humana — é um projeto. As plataformas lucram com a dopamina alheia. O caminho não é demonizar as redes, mas usar com consciência: perceber quando estou sendo reforçado artificialmente e decidir o que quero nutrir em mim — conexão real ou estimulação superficial.

5) Microtraição é busca por prazer e novidade, ou fuga de desconfortos internos?

As duas coisas se misturam. O cérebro humano é movido pela curiosidade e pela busca de novidade. Relações longas, por outro lado, tendem à previsibilidade e ao tédio, o que reduz o estímulo dopaminérgico. As redes sociais ampliam o “cardápio” de possibilidades, criando uma sensação de abundância e insatisfação constante.

Além disso, o uso digital também serve para fugir de estados emocionais negativos — solidão, ansiedade, frustração. Entrar nas redes e receber um elogio, uma curtida ou uma mensagem alivia o desconforto, funcionando como um reforço negativo.

Por isso, a questão não é só o prazer do novo, mas o que a pessoa está tentando evitar sentir. As microtraições, muitas vezes, não revelam um desejo por outro, mas um vazio dentro do vínculo principal — ou dentro de si.

6) Quais sinais iniciais mostram que alguém pode estar cruzando a linha emocional?

Nem sempre há sinais evidentes. Muitas pessoas mantêm o mesmo comportamento externo justamente para não despertar suspeitas — até compensam com mais carinho ou atenção.

Mas alguns sinais sutis aparecem: o aumento da necessidade de privacidade, longos períodos isolado com o celular, mudanças de rotina e, principalmente, o distanciamento emocional. A conversa fica superficial, o interesse pela intimidade diminui, e o parceiro passa a buscar reforço afetivo fora.

O ponto-chave é não reagir com acusação ou julgamento. Transformar o relacionamento em um tribunal é o que faz o outro se fechar ainda mais. A postura terapêutica — e relacional — é conversar de forma aberta: “percebi que você está mais distante, está acontecendo algo?”, “tem alguém que te interessa?”. Às vezes, uma conversa madura é o que impede uma traição de se consolidar.

7) Os limites da fidelidade mudaram? O que precisa ser redefinido hoje?

Mudaram profundamente. Ainda vivemos sob a influência do amor romântico ocidental, que idealiza a fusão, a exclusividade total e a posse. Esse modelo é insustentável no mundo contemporâneo, marcado pela hiperconectividade e pela exposição constante.

Hoje, a fidelidade não pode ser tratada como um pacote fixo, mas como um acordo emocional dinâmico. Precisamos conversar sobre o que fidelidade significa em cada relação: é permitido curtir? Conversar com ex? Mantener amizade com alguém que já teve interesse?

Essas conversas exigem honestidade, vulnerabilidade e maturidade emocional. Atualizar o conceito de fidelidade não é banalizar a traição, é humanizar o amor. Amar de forma livre significa permanecer enquanto fizer sentido — não por medo, controle ou contrato moral, mas por escolha consciente e recíproca.

8) Há diferenças entre homens e mulheres nas microtraições?

Historicamente, houve diferença de socialização, não de natureza. O machismo autorizou os homens a explorar o desejo e silenciou as mulheres. Mas isso vem mudando rapidamente. As novas gerações têm vivido os afetos, os desejos e até as traições de forma mais igualitária, menos presa aos papéis tradicionais.

Hoje, o comportamento de microtraição não pode mais ser explicado por gênero, mas por contexto emocional, oportunidade e aprendizado cultural. Todos, independentemente de gênero, estão expostos ao mesmo ambiente digital que incentiva a validação constante.

O desejo, o amor e a traição são expressões humanas universais. O que muda é a maneira como cada um aprendeu a lidar com eles — e o quanto se responsabiliza por suas escolhas.

9) Como discutir esses limites sem moralismo e sem cair no “cada um faz o que quer”?

Não existe fórmula pronta, mas existe um princípio: diálogo transparente e personalizado. Cada casal precisa construir seu próprio código ético e afetivo, com base em valores, não em regras externas.

Importar um modelo de relacionamento pronto é um erro. O que funciona para um casal pode destruir outro. O que fortalece é a capacidade de conversar sem medo sobre temas como desejo, ciúme, amizade com ex, pornografia e redes sociais — temas que antes eram proibidos.

A ideia é buscar um amor livre e responsável: livre porque é escolha; responsável porque reconhece o impacto das próprias ações no outro. Fidelidade emocional é menos sobre obediência e mais sobre coerência.

Conclusão:

Microtraições são o sintoma de uma época que oferece tudo, o tempo todo. Mas, no fundo, ainda estamos tentando aprender a ser íntimos num mundo que vive de conexões superficiais. O desafio não é vigiar o outro, é aprender a sustentar a liberdade sem perder o vínculo — e isso exige presença, conversa e maturidade emocional.

Botão Voltar ao topo