O palco é a favela, e o show é o favelado. Ou eu fiquei louco ou essa parece ser a mensagem do novo DVD do Zeca Pagodinho, quando logo aos primeiros segundos, surgem no telão, embalados por um choro ancestral de cuíca, alguns dos principais nomes da maior potência cultural que esse país já produziu: Monarco, Dona Ivone Lara, Martinho da Vila, Paulinho da viola, Fundo de Quintal, Manacéa, Casquinha, Wilson Moreira, Aniceto, Leci Brandão, Tia Doca, Jovelina, Almir Guineto, Alcione, João Nogueira, Jorge Aragão, Teresa Cristina. Geral favelado, geral gênio, black creators que juntos moldaram, com dor e poesia, a face cultural desse país, de dentro dos guetos para o mundo todo, muito antes do nascimento da expressão “economia criativa” que nunca os remunerou devidamente.
A lista de imortais da Academia do Povo, logicamente, só fecha quando surge no telão Beth Carvalho que lançou inúmeros talentos do samba, entre eles, o Zeca. E é o homem que entra no palco do Engenhão, no Rio de Janeiro, lotado, para cantar “Camarão que Dorme a Onda Leva”, samba feito em parceria com Beto sem Braço e Arlindo Cruz, e mostrar toda a sua gratidão à madrinha, que, em 1983, o lançou para o mundão com essa música. Anota aí, aula 01 do samba: ancestralidade e tradição.
“Pisa como eu Pisei”, de Zeca Pagodinho, Aluísio Machado e Beto Sem Braço, é a próxima lição, mas como é lição de vida, o ideal era que você, aspirante a tiktoker, geração XYZ ou sei lá o quê, além de escutar várias vezes esse samba-faculdade, printasse a letra e compartilhasse com os seus colegas, pois aqui está a jornada do herói Zeca, aos 65 anos de vida, celebrando 40 anos de sucesso e chamego com o Brasil. É uma reflexão profunda sobre a sobrevivência nesse país: os desafios, os caôs, os B.O.s e as conquistas, mas também e principalmente sobre a força da fé para gente como nós. Não há sucesso sem Deus, qualquer que seja Ele.
O que acontece desse momento em diante é a mais pura materialização do propósito maior do samba: ser música, diversão, alento, abraço, cachaça, amigo, amante, e ao mesmo tempo, um manual de vida para quem é brasileiro e, como tal, não desiste nunca. Mais lições em forma de canção surgem com “Ser Humano”, de Claudemir, Marquinho Índio e Mário e “Quando a Gira Girou”, do saudoso Claudinho Guimarães e de Serginho Meriti, num dos momentos mais lindos do espetáculo, com belas imagens no telão e delírio do público que vira coral em uníssimo.
Ao cantar “Lama nas Ruas”, sucesso dele com o grande Almir Guineto, Zeca presta homenagem ao seu maestro e parceiro Rido Hora que adentra o palco, no sapatinho, tocando sua gaita. Juntos, nos lembram que o Brasil é gigante e quem manda na gente é o coração. Aliás, é o coração que, despedaçado, sente a sinceridade na hora de “Mais Feliz”, lindo samba de amor feito por Toninho Geraes e Paulinho Rezende. E como o amor, por definição e infortúnio, contém tretas, adentram na avenida os maiores clássicos das rodas de samba e das noites de boemia: “Vai Vadiar”, de Ratinho e Monarco, e “Judia de Mim”, de Zeca e Wilson Moreira.
Marcelo D2, aquele sambista carioca camuflado de rapper, ou vice e versa, entra e fortalece “Minha Fé” em que ambos batem cabeça para Ogum, Xangô, Oxum e Obaluaê, orixás protetores e guias na jornada do cantor. A celebração da espiritualidade e da alegria de viver segue com “Patota do Cosme” e “Ogum”, essa com fortíssima participação do rapper e escritor Djonga que prova, com seu flow, que a fé conecta todas as gerações de corações favelados.
O palco vira viela de vez quando chegam Jorge Aragão, Diogo Nogueira, Pretinho da Serrinha e Xande de Pilares para cantar “Minta Meu Sonho”, “Não Sou Mais Disso”, “Brincadeira Tem Hora”. Ouvir esses caras cantando juntos e modulando seus timbres diferenciados, é a própria definição da palavra “sinfonia”, que antes de ser exclusiva da música erudita, é apenas a “união das vozes”, nesse caso, as vozes que nos formaram como brasileiros.
Em seguida, entra “Maneiras”, samba de Sylvio da Silva, imortalizado em 1986, quando Zeca manda o papo reto sobre os direitos almejados pelo trabalhador brasileiro. Aquela conversa particular que se tem com o copo de cerveja ou com o baseado, para pensar melhor na vida e filosofar. Em “Saudade Louca”, o bagulho fica doido de vez: Seu Jorge chega na beca. Os dois levam a carta de amor composta pelo gênio Arlindo Cruz e os parceiros Acyr Marques e Franco a um nível histórico, ou seja, vai ser muito difícil esquecer!
“Ratatuia”, de Roberto Lopes, Canário e Alamir, “Vacilão”, samba falado de Zé Roberto, e “Caviar”, de Barbeirinho do Jacarezinho, Luiz Grande e Marquinhos Diniz, formam uma trilogia sobre nossa vida na favela, com direito a lágrimas, pulada de cerca e gargalhadas. Tudo para relaxar o público para o momento de maior emoção, quando a rainha Alcione entra e, junto com Zeca, canta “Mutirão de Amor”, obra prima de Jorge Aragão, Sombrinha e Zeca Pagodinho que deveria ser ensinada nas escolas para preparar a molecada para a vida. A emoção parece não poder subir mais, até que num lance de improviso, Zeca consegue “roubar” “Sufoco” da Marrom. O público viaja no tempo e nas próprias histórias. Quem nunca se rasgou por dentro ouvindo Alcione? Nem o malandro de Xerém aguenta e nessa hora vira fã junto com a multidão.
Depois do chorar na coxia, Zeca volta refeito e lança o míssil “Faixa Amarela”, dele com Jessé Pai, Luiz Carlos, e Beto Gago, sem os versos polêmicos, porque malandro que é malandro sabe evoluir no tempo. E do futuro vem outro míssil, de beleza, talento e carisma: Iza. Juntos cantam “Cadê Meu Amor” e “Balancê”, e a moça de vestido azul, vai embora deixando saudade. Zeca emenda em “Samba Pras Moças”, faixa que deu nome ao seu nono disco, lançado em 1995, considerado “obra prima irretocável”, por muitos especialistas.
Diretamente de 1986, surgem os sucessos do início da carreira “Casal Sem Vergonha”, “SPC” e “Coração em Desalinho”, do primeiro disco. Como pode? Os versos de “Deixa a Vida Me Levar”, de Serginho Meriti e, fazem o Engenhão levantar as mãos para o céu e agradecer por tudo que Deus nos deu. O coração no fundo já sabe que o show está quase acabando quando chega a hora da “Verdade”, mas não entende como pode um artista ter tantos sucessos e falar tanto o que a gente pensa e sente na intimidade, quando apagamos a luz. A resposta entra no palco em forma de família ao som de “Bagaço da Laranja” e todo mundo tem a nossa cara, mulher, filhos e netos, mas principalmente o próprio Zeca. Todo mundo é gente como a gente. Esse DVD é como o samba, ele diverte, emociona e ensina, mas também mostra porque o Zeca mora há 40 anos no coração do povo: porque conquistou o mundo sem jamais mudar sua essência. Lição final do curso: Verdade.